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segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

No ano de seu centenário, textos inéditos encontrados na Inglaterra revelam aspecto desconhecido de Antônio Callado - BBC Brasil

Em 26 de janeiro de 2017, o escritor brasileiro Antônio Callado completaria 100 anos se estivesse vivo.
Considerado por críticos como o americano Raymond L. Williams como um dos mais destacados romancistas latino-americanos do século 20, a obra de Callado permanece mais atual do que nunca.
Mais do que isso, o autor brasileiro continua surpreendendo o público com novidades. A descoberta, em arquivos britânicos, de peças de teatro escritas por Callado para serem transmitidas por rádio durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) traz à tona um uma face praticamente desconhecida do autor.
Tais peças têm o potencial de lançar uma nova luz sobre sua obra e seu período de formação intelectual no Reino Unido, país em que viveu como correspondente de guerra entre 1941 e 1947.

Peças para teatro

Antônio Callado estreou oficialmente como dramaturgo em 1951, com a peça O Fígado de Prometeu, mas ganhou notoriedade mesmo com Pedro Mico, em 1957. Ele foi um dos primeiros autores no Brasil a escrever peças de teatro para protagonistas negros.
A partir de Pedro Mico, Callado escreveu uma série de textos de teatro com personagens e temas que discutem, direta ou indiretamente, o racismo no Brasil, como Uma Rede para Iemanjá (1961), O Tesouro de Chica da Silva (1962) e A Revolta da Cachaça (1983). No entanto, a descoberta recente em arquivos britânicos revela que o autor já escrevia peças nos anos 40, algo ignorado por grande parte dos críticos e biógrafos até então.


Antonio Callado em 1941Direito de imagemACERVO ANA CALLADO
Image captionCallado chegou à Inglaterra em 1941 - ano marcado por bombardeios alemães sobre Londres

A vida de Antônio Callado se confunde de forma fascinante com a história do século 20. Como jornalista, cobriu eventos como a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a criação da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1948, e a Guerra do Vietnã (1955-1968), essa última como enviado do Jornal do Brasil em 1968.
No início dos anos 60, escreveu uma série de reportagens, primeiro para o Correio da Manhã e depois para o Jornal do Brasil, sobre as Ligas Camponesas, colocando o tema da reforma agrária sob os holofotes da imprensa e fixando na linguagem corrente o termo "indústria da seca".

'Quarup'

Como romancista, Callado começou a pavimentar seu caminho ainda em 1954, com Assunção de Salviano, que tem como pano de fundo justamente os conflitos fundiários do Nordeste.
No entanto, é com o romance Quarup, de 1967, que Callado se consagra como autor. Considerado por alguns críticos como o romance mais importante da década de 60, Quarup - nome de um ritual fúnebre dos povos indígenas do Xingu - tem como protagonista um padre que vai para o Norte do país catequizar os índios e, depois de uma série de choques e descobertas, se converte em militante contra a ditadura militar (1964-1985).
Na época de sua publicação, o romance foi saudado por críticos como Ferreira Gullar e Hélio Pelegrino como obra-prima, capaz não apenas de produzir um retrato da encruzilhada civilizacional pela qual passava o Brasil de então, mas também como narrativa capaz de produzir uma síntese estética do projeto nacional acalentado por intelectuais e movimentos sociais naquele momento. Tal projeto fora agrupado sob as chamadas "reformas de base", colocadas como bandeira do governo João Goulart e barradas abruptamente pelo golpe militar de 1964.
A partir dos anos 1970, o escritor produziu romances que refletem sua perplexidade diante do recrudescimento do autoritarismo no Brasil e da incapacidade das esquerdas de produzir um projeto de enfrentamento da ditadura que oferecesse uma saída estruturada para o país. Tais questões são abordadas em Bar Don Juan (1971) e Reflexos do Baile (1976).
Embora sua produção nos anos 80 se torne ainda mais marcada pelo pessimismo em relação aos rumos do país, como em Sempreviva (1981), Expedição Montaigne (1982) e Concerto Carioca (1985), é a ligação entre o jornalista e o romancista que será consagrada no fim de sua obra.


Callado na BBC em 1942Direito de imagemACERVO ANA CALLADO
Image captionÚltimo romance, 'Memórias de Aldenham House (1989)', explora o ambiente vivido pelo autor entre 1941 e 1947, quando trabalhou como jornalista na BBC

O último romance, Memórias de Aldenham House (1989), é uma narrativa que liga as duas pontas da vida de Antônio Callado, ao explorar através da ficção o ambiente vivido pelo autor entre 1941 e 1947, quando foi à Inglaterra para trabalhar como jornalista.

BBC e Segunda Guerra

Em 1941, em plena Segunda Guerra Mundial, Callado assinou contrato com a então jovem Seção Latino-americana da BBC, que começara a transmitir em português e espanhol apenas alguns anos antes, em 1938. Depois de atravessar o Atlântico em plena guerra, Callado pôs os pés pela primeira vez na ilha que mudaria sua vida: a Grã-Bretanha.
Vivendo em Londres como redator e tradutor da BBC - e um dos pioneiros do que viria a ser mais tarde a BBC Brasil - Antônio Callado deparou-se pela primeira vez com os dramas da guerra. Vivenciou de perto os bombardeios sobre a cidade, o racionamento de comida e de itens básicos como papel, ao mesmo tempo em que observou a fantástica capacidade britânica de união nacional em torno da resistência ao avanço nazista.
Na Inglaterra, Callado também conheceu Jean Maxine Watson, funcionária britânica da BBC com quem se casou em 1943. O casal retornou ao Brasil em 1947, onde tiveram três filhos, ficando juntos até o falecimento de Jean Maxine, em 1973. Antônio Callado ainda viveria por mais duas décadas. Ele morreu em 28 de janeiro de 1997.
Em entrevista para a crítica literária Ligia Chiappini, ainda no início dos anos 80, Callado revela que foi na Inglaterra, durante a guerra, que descobriu sua "paixão pelo Brasil": "De repente, começou a bater aquela saudade do Brasil. Tão grande...".
A saudade e a descoberta do amor pela terra natal fariam Callado percorrer o Brasil inteiro, anos mais tarde, já como renomado jornalista do Correio da Manhã.
Sua estadia na Inglaterra teve também um papel essencial na sua formação intelectual. Em entrevista concedida ao sociólogo Marcelo Ridenti, em julho de 1996, Callado afirma: "A Inglaterra, para mim, foi mais - o tempo em que eu estive na BBC, cinco anos da minha vida, quando eu era jovem, tinha vinte e poucos anos, aquilo marca - foi para mim como uma educação. Uma universidade que cursei".
Na comparação de entrevistas que concedeu ao longo da vida com aspectos autobiográficos explorados por Callado em seu último romance, Memórias de Aldenham House (1989), é possível perceber também que foi durante sua estadia na Inglaterra que o autor conheceu o trabalho dos dois escritores que teriam, a partir de então, grande influência sobre a sua escrita: o romancista britânico Graham Green (1904-1991) e o modernista irlandês James Joyce (1882-1941).
A influência de seus anos na Inglaterra foi duradoura e acompanhou Callado até o fim. Quando faleceu, em janeiro de 1997, o obituário publicado na revista Isto É foi intitulado "Um Gentleman Indignado", referência à influência britânica, por um lado, mas também a seu engajamento político na luta contra a ditadura (1964-1985). Seu amigo Nelson Rodrigues disse certa vez, em forma de pilhéria, que Callado era "o único inglês do mundo real".


Roteiro de Jean e Marie
Image captionPeças de rádio-drama como 'Jean e Marie', transmitida pela BBC em 1943, abordam vários dos temas e questões que Callado desenvolverá em seus romances dos anos 50, 60 e 70

Roteiros inéditos

Foi em busca de rastros deixados por Antônio Callado na Inglaterra, que iniciei uma pesquisa nos arquivos da BBC ainda em 2014. O resultado foi a descoberta de uma série de documentos inéditos não apenas sobre Callado, mas sobre a presença de intelectuais brasileiros na BBC durante a Segunda Guerra Mundial. O material encontrado inclui dezenove roteiros de rádio-drama, peças de teatro para serem encenadas no rádio, escritos por Antônio Callado e desconhecidos por biógrafos, críticos e historiadores até então.
As peças são as primeiras aventuras de Callado pelo mundo da ficção e tem o potencial de lançar uma luz nova sobre o trabalho do autor e sobre o seu processo de formação intelectual. Esse material está sendo editado para sair no Brasil ainda esse ano e virou tema de pesquisa na Universidade de Oxford.
Observando peças de rádio-drama como Jean e Marie, transmitida pela BBC em 1943, é possível perceber que vários dos temas e questões que Callado desenvolverá em seus romances dos anos 50, 60 e 70 - como as relações entre misticismo e revolução, entre arte e transformação social e o papel do artista engajado - já aparecem problematizados nas suas peças dos anos 40. Isso revela como sua experiência na Inglaterra durante a guerra impactou sua obra.
Outro aspecto interessante revelado pelas peças é a influência da linguagem do rádio e da cultura de massa dos anos 40 nas obras de Callado. Nesse sentido, seu trabalho como redator e tradutor na BBC foi essencial, já que foi lá que o autor entrou em contato pela primeira vez com a linguagem do rádio, algo que teria posteriormente grande impacto sobre seu estilo.
Callado era um escritor profundamente comprometido com o Brasil. Sua estadia como jornalista na Inglaterra, quando jovem, o ajudou a olhar para seu próprio país por um outro ângulo. Reler, hoje, os livros de Antônio Callado é uma forma instigante de olhar para a história recente do Brasil e para sua relação com o mundo.
A obra de Callado é atual porque não perdeu a capacidade de nos surpreender, combinando o cosmopolitismo do autor com seu olhar ao mesmo tempo afiado e compassivo para o país que ele tanto amava: o Brasil.
*Daniel Mandur Thomaz é professor e pesquisador da Universidade de Oxford

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